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O garimpo de ouro e a indústria de joias no Brasil: o país em busca do desenvolvimento sustentado
Publicado em 24/01/2020Por Ecio Barbosa de Morais
Historicamente, o Estado Brasileiro tem se mostrado incapaz de articular e promover um projeto de desenvolvimento sustentado do garimpo de ouro no país. Ao longo dos anos a atividade garimpeira tornou-se um problema social e ambiental sendo, sistematicamente, criminalizada e reprimida pelas autoridades de plantão, além de prejudicar a imagem do Brasil no exterior.
A responsabilidade do Estado nesse tema é indeclinável, uma vez que ele é o detentor dos recursos minerais no subsolo e agente regulador da produção e comercialização de nossas riquezas minerais. Cabe ressaltar ainda que, no caso específico do ouro, estamos tratando de um mineral estratégico, um ativo monetário e cambial, símbolo de riqueza, com alta densidade de valor e que, ao longo dos séculos, sempre despertou a cobiça humana.
Apesar de todas as controvérsias associadas à exploração mineral, temos que reconhecer que o Brasil é um país continental e vive um casamento indissolúvel com sua indústria de mineração, incluindo a atividade garimpeira. Tornou-se urgente, portanto, a formulação de um plano de desenvolvimento sustentado para o setor, particularmente, para a mineração industrial e garimpo de ouro.
Até o final dos anos 70, apesar do reconhecido potencial geológico para a produção do metal, o governo brasileiro demonstrava um notável desinteresse pela pesquisa e mineração de ouro. A produção nacional encontrava-se quase que integralmente na clandestinidade, e não era suficiente para atender a demanda industrial, proveniente da indústria de joias e eletroeletrônica, e o mercado de investimento em bolsa que praticamente inexistia. O quadro só começou a mudar no final da década de setenta em função de três fatores: o primeiro devido a descoberta de Serra Pelada, um garimpo a céu aberto que chegou a reunir mais de 80.000 pessoas no auge de sua produção. O segundo refere-se aos recordes sucessivos nos preços do metal no mercado internacional ao longo dos anos 70. E, finalmente, o terceiro – e talvez o mais importante – está na progressiva deterioração das contas externas brasileiras observadas no início dos anos 80, o que despertou nas autoridades do Banco Central o interesse pelo metal precioso como reserva cambial.
A crise da dívida externa e a implosão financeira do Brasil em 1982 foi, portanto, um marco divisor no processo de criação de um mercado de ouro no país, alertando as autoridades para a necessidade de legalizá-lo e trazê-lo à superfície.
A iniciativa de se desenvolver um mercado de investimento em ouro foi favorecida pelo tratamento fiscal dado ao metal naquele período, sob o qual incidia o IUM – Imposto Único Sobre Minerais (extinto em 1988), com alíquota de 1% no ato da primeira compra e 1,2% de contribuições sociais, “em cascata” a cada vez que o metal era comercializado.
Atuando como uma espécie de “padrinho” do processo de regularização, o Banco Central incentivou a concentração do mercado de ouro no segmento financeiro e vários obstáculos burocráticos foram sendo superados ao longo dos anos. Porém, um anacronismo na tributação do metal, inserido na Reforma Constitucional de 1988, segregou o tratamento do ouro como ativo financeiro e como mercadoria, trazendo enormes transtornos para o mercado a partir de então. A nova Constituição extinguiu o IUM (Imposto Único sobre Minerais) que foi incorporado pelo novo ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e colocou o ouro sob a ameaça de ser tributado em até 30% pelos estados da federação. Diante da ameaça, o setor financeiro, com apoio ostensivo do Banco Central, se mobilizou e conseguiu que os constituintes desdobrassem a abordagem do ouro, distinguindo o metal em ouro-mercadoria, que passou a sofrer a incidência do ICMS e ouro ativo-financeiro com alíquota baixa de 1% de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras), reforçando a natureza dual do ouro. A medida garantiu a continuidade do processo de regularização no mercado financeiro, mas penalizou e segregou o setor produtivo de joias, sujeito ao ICMS de até 30%, praticamente inviabilizando uma indústria em condições plenamente formais no país, situação que perdura até hoje.
Das quase 100 toneladas de ouro produzidas no Brasil em 2018, 90 toneladas provêm de grandes mineradoras e destinam-se, na sua integralidade, à exportação, praticamente desoneradas de tributos. Sobre o ouro exportado incide-se apenas a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais – CFEM, com uma alíquota de 1,5%.
Já o ouro comercializado no mercado interno e que abastece o setor joalheiro e o mercado financeiro é o metal remanescente, algo em torno de 20 toneladas, proveniente de garimpo, não destinado à exportação e sujeito a todas as controvérsias identificadas na atividade garimpeira.
Em 12 de julho de 2019, o Ministério Público no Município de Santarém ajuizou uma Ação Civil Pública contra a Agência Nacional de Mineração, o Banco Central, a União e uma DTVM visando responsabilizar a todos pelo cenário de “absoluto descontrole” na mineração e comercialização de ouro na região de Santarém no Pará.
A Ação é um contundente documento que traça um detalhado diagnóstico e propõe soluções para as fragilidades identificadas no processo de mineração e comercialização de ouro proveniente de garimpos na região Amazônica. O Ministério Público defende a informatização dos procedimentos fiscais no transporte e comercialização do ouro proveniente de garimpo, uma melhor definição do conceito de atividade garimpeira, maior rigor na apresentação do Relatório Anual de Lavra, controle na custódia e destino do ouro adquirido pelas DTVMs, dentre outras medidas. São sugestões pertinentes que, seguramente podem subsidiar, um programa mais amplo de regularização da atividade garimpeira. São medidas necessárias, porém não suficientes.
O país exporta hoje quase 100 toneladas de ouro por ano com baixo valor agregado e baixa arrecadação tributária (só se recolhe a CFEM – R$ 142 milhões em 2018, 4,7% da arrecadação total da Contribuição que atingiu R$ 3 bilhões no mesmo ano), já que o metal exportado está desonerado de tributos, como o ICMS, por exemplo. Caso houvesse um adensamento da cadeia produtiva e esse ouro exportado fosse previamente beneficiado pela indústria de joias poderia ser agregado algo como US$ 100 milhões por tonelada (preço do grama a R$ 200,00 e multiplicador de 1.50), ou seja, o país perde, no custo de oportunidade de não beneficiar o metal internamente mais de US$ 10 bilhões por ano, sem contar correspondente impacto na geração de empregos, tributos e renda.
O próprio Plano Nacional de Mineração 2030, elaborado pelo Ministério de Minas e Energia, dentre seus objetivos estratégicos, defende a agregação de valor ao bem mineral produzido no país através de uma ampla articulação entre governo e setor privado, convergindo na multiplicação de renda, emprego, pesquisa e desenvolvimento.
De acordo com o Plano “A exportação de minérios em forma bruta gera, proporcionalmente, menos emprego e renda, deixando o País mais vulnerável às flutuações dos preços internacionais. A consequência mais direta é a exportação de empregos e oportunidades em potencial para outros países. Outra consequência da não agregação de valor é que ficam reduzidas as relações de compra e venda entre empresas a montante e a jusante no País e diminuem as possibilidades de inovações ao longo da cadeia produtiva. Assim, um dos grandes desafios do País é criar mecanismos capazes de incentivar o setor produtivo a alcançar patamares mais avançados de suas cadeias produtivas de bens minerais, tanto para atender o mercado interno como para ampliar as exportações de produtos manufaturados”.
A formalidade e legalidade das atividades de mineração (ouro e gemas), elo inicial da cadeia produtiva do segmento joalheiro, é de fundamental importância para que as operações subsequentes (lapidação, refino, industrialização e comércio) ocorram de forma regular. Por analogia, sem uma certidão de nascimento, não se consegue obter uma carteira de identidade ou um passaporte. Lamentavelmente, os entraves ao pleno desenvolvimento da indústria de joias no Brasil podem ser encontrados ao longo de toda sua cadeia produtiva, começando pelo processo de mineração de ouro e gemas, onde os problemas relacionados à questão ambiental e à falta de fiscalização dos órgãos de monitoramento e de procedimentos de controle burocráticos (e ultrapassados), além de uma tributação inadequada e complexa, se acumulam a décadas.
Ao prever uma tributação diferenciada para o ouro ativo financeiro, 1% de IOF, e para ouro mercadoria com destinação industrial, 18% ou mais de ICMS, os constituintes de 1988 criaram uma insegurança jurídica no início da cadeia de produção de joias e, em boa medida, comprometeram a viabilidade de uma indústria de joias em condições regulares no país.
Se encontra aí um primeiro entrave ao pleno desenvolvimento do setor. Em uma futura reforma tributária, a atual legislação que ampara a comercialização de ouro no país deve ser revista, unificando as alíquotas incidentes sobre o metal, seja ele destinado ao mercado financeiro ou ao processamento industrial. A experiência internacional também deve ser observada prevendo uma alíquota baixa ou até mesmo a não incidência do IVA, como ocorre na Europa.
A criação de um IVA, nacional, incorporando os impostos incidentes sobre produção e consumo (IPI, ICMS, PIS-COFINS e ISS), com alíquota uniforme, cobrado no destino, de base ampla, sem restrição na utilização dos créditos obtidos na aquisição dos insumos. A experiência internacional nos ensina ainda que sob as matérias primas (ouro e gemas) não existe incidência de IVA (IVA-FREE) ou, na pior das hipóteses, o imposto deve ter uma alíquota muito baixa de forma a não estimular o descaminho e promover a formalidade da cadeia produtiva. Como o imposto sobre o valor agregado incide, em última análise sobre o consumidor final, para efeitos de arrecadação o impacto é nulo.
Caso a reforma tributária não prospere, nos parece de vital importância a revisão da sistemática de tributação do setor – de modo a se retomar as alíquotas de 1% sobre os minerais (gema e ouro) praticadas durante a vigência do Imposto Único sobre Minerais, a promoção da redução ou extinção do IPI incidente sobre a indústria e, finalmente a redução do ICMS incidente sobre a indústria e o varejo. Cabe ainda a concessão de alíquota zero do Imposto Importação de pedras preciosas brutas, de forma a promover a indústria de lapidação interna e estimular as exportações e a imposição de uma alíquota de 1% do imposto de exportação incidindo sobre as exportações de ouro. Considerando os valores exportados hoje, esse imposto poderia gerar uma arrecadação de R$ 20 milhões, quase o dobro do valor arrecadado do IPI, compensando com folga a desoneração da indústria joalheira.
A exemplo do que aconteceu durante o processo de regularização do mercado primário de ouro no Brasil, nas décadas de 70 e 80, as autoridades devem buscar uma interlocução com o setor privado, visando o aprimoramento e a modernização dos procedimentos fiscais de aquisição do metal nos garimpos, o aperfeiçoamento e a agilização dos processos de concessão de lavra e, finalmente, a adequação tributária do ouro quando destinado a indústria.
Depois de 30 anos o Brasil tem a oportunidade de dar início à um novo ciclo do ouro de forma sustentável, responsável e estimular o desenvolvimento de uma indústria joalheira que, a exemplo da Índia, poderá gerar bilhões de dólares de divisas internacionais, renda, emprego e prosperidade para todos.