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A suspensão da boa-fé na aquisição de ouro pelas DTVMs

Publicado em 11/04/2023

“Um tiro que pode sair pela culatra”, caso a medida judicial não esteja associada ao fortalecimento dos órgãos de controle; ANM precisa ter capacidade de monitoramento e fiscalização

Por Ecio Morais

No último dia 04 de abril, o ministro Gilmar Mendes do STF deferiu pedido formulado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), e determinou a suspensão da eficácia do art. 39, § 4º, da Lei Federal 12.844/2013, o famoso artigo da boa-fé na aquisição de ouro pelas DTVMs. O teor do parágrafo 4º do referido artigo é o seguinte:

(…)

  • 3º É de responsabilidade do vendedor a veracidade das informações por ele prestadas no ato da compra e venda do ouro.
  • 4º Presumem-se a legalidade do ouro adquirido e a boa-fé da pessoa jurídica adquirente quando as informações mencionadas neste artigo, prestadas pelo vendedor, estiverem devidamente arquivadas na sede da instituição legalmente autorizada a realizar a compra de ouro.

Na avaliação do Ministério Público, devido a este dispositivo legal, foi criado um “sistema de presunções” que valida a veracidade da informação do vendedor (garimpeiro) sobre a origem do ouro e a boa-fé do comprador (DTVM). Neste caso, por se beneficiarem da presunção de boa-fé, as DTVMs não se preocupam em verificar a procedência do metal adquirido, permitindo que o ouro ilegal (proveniente de terras indígenas ou área de conservação) seja inserido no sistema econômico e escoado, com aparência de licitude, para o mercado internacional e/ou mercado financeiro e joalheiro. Desse modo, de acordo com o MP, vender ouro às DTVMs se torna operação mais simples do que a aquisição de remédio de uso controlado em drogarias. O argumento é poderoso e, como veremos, o embasamento legal é robusto. Cabe indagar, no entanto, qual será o efeito da decisão do Ministro Gilmar Mendes, caso a medida seja adotada isoladamente, sem um incremento no aparato de fiscalização dos organismos de controle como a Agência Nacional de Mineração.

Importante reconhecer que o ministro em seu despacho, além de suspender a eficácia do § 4º da Lei 12.844/13, determinou também a “adoção, no prazo de 90 (noventa) dias, por parte do Poder Executivo da União (…) de um novo marco normativo para a fiscalização do comércio de ouro, especialmente quanto à verificação da origem legal do ouro adquirido por DTVMs”.

O amparo legal para a adoção da medida é amplo. Na dimensão ambiental temos o elevado padrão de proteção ao meio ambiente consolidado na Constituição Federal, cujos alicerces são os princípios da Precaução e da Prevenção, uma vez que os danos nessa seara podem ser irreversíveis e irreparáveis.

Cabe registrar ainda que as DTVMs, assim como as joalherias, são instituições sujeitas às normas de fiscalização e às obrigações impostas pela Lei 9.613/1988 (Lei de Lavagem de Dinheiro), dentre as quais destacamos: a obrigatoriedade de identificar clientes, manter registros de todas as operações e comunicar as operações suspeitas.

No entendimento de parcela do poder judiciário, contribuem para a perpetração dos danos ambientais todos aqueles que, de algum modo, consomem ouro extraído ilegalmente, ou correm o risco de estar consumindo ouro extraído ilegalmente, por não contar com mecanismos de compliance suficientemente fortes a ponto de assegurar a origem lícita dos insumos (…). Nesse sentido, ao presumir a legalidade do ouro adquirido e a boa fé do adquirente, o § 4º da Lei 12.844/13 enfraquece o sistema fiscalizatório e da margem para a inserção do ouro ilegal no mercado formal, em tese, a fase de “colocação” da prática de lavagem.

Em um arriscado exercício de “futurologia”, qual será o efeito prático da medida no combate ao garimpo predatório, caso ela seja adotada isoladamente? A resposta é que, refletindo estritamente do ponto de vista do mercado, da milenar lei da oferta e da procura, o “tiro pode sair pela culatra”.

A Lei da Oferta e da Procura

Está fartamente documentado que o ouro, por sua natureza e características, não é de respeitar restrições rigorosas e tributação excessiva. O metal, no sentido estrito, não é uma moeda. No entanto, é considerado reserva de valor, universalmente aceito, um ativo de alta liquidez conversível em qualquer moeda de qualquer país. Amplamente utilizado como instrumento cambial, somente o Banco Central do Brasil adquiriu no ano de 2021 cerca de 40 toneladas do metal para fortalecer suas reservas.

O ouro possui todas as qualidades de um instrumento monetário: durabilidade, maleabilidade, divisibilidade, beleza, imunidade prática à corrosão, grande valor em relação ao volume e raridade sem ser excessiva. Dado o seu valor intrínseco, resistência física e facilidade de estoque e transporte, o metal ajustou-se perfeitamente ao papel de moeda corrente. Não é difícil de perceber que um metal com essas características seja difícil de ser “dominado”.

Exemplo claro deste desafio de colocar travas ao mercado de ouro pode ser encontrado nos anos 80 no Brasil. A política cambial vigente no país naquele período era a do rígido monopólio operado pelo Banco Central. Os dólares obtidos com as exportações eram, obrigatoriamente, vendidos ao BACEN e a demanda por dólar da sociedade sofria severas restrições.

A compra de moeda estrangeira para viagem ao exterior, por exemplo, chegou a ser limitada em US$ 1.000 com um intervalo mínimo de 06 meses entre uma aquisição e outra. As restrições impostas alimentaram o crescimento de um mercado paralelo de divisas. Dado o seu perfil de ativo com liquidez internacional, relativa facilidade de transporte e alto valor intrínseco, o ouro era um produto ideal para ser desviado ao exterior e trocado por dólares que, por sua vez, abastecia o mercado paralelo de câmbio. O Uruguai, por exemplo, sem produzir nenhuma grama de ouro, chegou a exportar mais de 35 toneladas para os Estados Unidos em 1985. A origem do metal era quase toda proveniente de contrabando do Brasil.

O mercado de ouro, portanto, é complexo e extremamente sensível. Voltando ao tema da decisão do Ministro Gilmar Mendes, isoladamente, apesar de correta do ponto de vista legal, está longe de ser suficiente para minimizar a praga do garimpo predatório. A medida, seguramente irá retrair as operações das poucas DTVMs que operam no segmento ouro, aumentar os custos de conformidade e “compliance” e, no limite, desestimular as empresas a operarem no mercado. Nossa impressão é que, caso isto aconteça, não será um fator suficiente inibir o garimpo ilegal. O ouro sempre encontra caminhos alternativos.

O elemento chave a ser considerado na complexa equação do garimpo de ouro na Amazônia, seguramente, é a capacidade de monitoramento e fiscalização da ANM. Nos últimos 20 anos, as cotações do ouro mais que dobraram de preço no mercado internacional e isto, sem dúvida, estimulou a exploração predatória de ouro na Amazônia. No mesmo período, no entanto, a força de trabalho e fiscalização da Agência foi reduzida pela metade. Atualmente, a ANM conta com apenas 05 funcionários para fiscalizar toda a arrecadação da CFEM – Compensação Financeira pela Exploração Mineral, o “royalt” da mineração no Brasil.

Portanto, a medida judicial do STF, desassociada de uma política efetiva de aprimoramento técnico e fortalecimento dos órgãos de controle corre o risco de ser, ao fim e ao cabo, “um tiro que sairá pela culatra”.  Como já dizia o tributarista Gunnar Myrdal, em termos de tributação e regulação, tem-se de saber precisamente o que se está fazendo para que os resultados não divirjam grandemente do que se pretende fazer.

*Ecio Morais é diretor executivo do IBGM